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Bendita Gambiarra: cadernos de segunda mão.

Aline e Cássia usam o caderno como suporte e como objeto para suas investigações poéticas.

Com pesquisas distintas, embora comunicantes, elas exploram cortes de papel, personagens de

mundos fantásticos, cores em sequência, possibilidades da sobreposição. E ainda, o

desdobramento do papel no mundo (ou vice­versa): as intervenções públicas, a auto­ficção, o

corpo como processo narrativo.

Nas duas a predominância do traço. Os personagens fantásticos. As referências místicas. As

sugestões oníricas. Aline mais próxima do traço infantil e Cássia movida por distorções,

hibridismos. Nas duas, o personagem­entidade. Aline cria ícones que às vezes lembram cartas

de tarot ("bruxa do chá", "diabo coxo") e se refere constantemente a um imaginário de referências

simbólicas (a estrela de david, o livro aberto, a faca, a mão cigana) e os zoomorfismos de Cássia

sugerem xamãs e figuras imponentes (cabeças de pássaros em corpos humanos, cabras,

corujas). Por vezes esse repertório vem acompanhado de frases: "Eu quero explorar mais o um"

ou "Sem medo". As palavras aparecem reforçando certos posicionamentos.

Há, além disso, a dinâmica de circulação dos cadernos que julgo não menos importante. A

quantidade de feiras de publicação independente, de pouco tempo pra cá, aumentou

exponencialmente. Diferente da lógica do grande negócio, o fazer artesanal traz em seu discurso

a valorização do produtor local, a escala reduzida como promessa de qualidade e cuidado, a

nostalgia do "feito a mão" e a maior acessibilidade. O que vemos, no entanto, é um processo de

hipsterização disso. Há muita construção de fetiche em torno do "feito a mão" e o que se dá, na

prática, são artigos com preços iguais ou superiores ao mercado editorial dominante. Longe de

não reconhecer o trabalho e o investimento de um produto "self made" e toda diferença de custo,

me preocupo com a linha tênue que separa esta filosofia de um novo nicho hype. Há,

certamente, propósitos pra tudo. Não me interessa cair num julgamento moral deste aspecto,

mas o produto artesanal e local só instigará como real alternativa senão se transformar num novo

artigo de luxo. Os produtos são trabalhos de arte, mas também são cadernos. Quanto à isso,

também enxergo um papel político na Bendita Gambiarra pelo exercício de acessibilidade. Não

parece haver nenhuma glamurização da "peça única" como distintivo, embora os cadernos sejam

totalmente autorais. Este contraponto ingenuamente romântico às dinâmicas de um "mercado de

arte" é também um campo fértil possível.

O que parece, portanto, é que a Bendita Gambiarra está interessada num reencantamento e

fabulação da vida. A mística e a ficção se colocam como valores e modos de estar no mundo.

Num misto de leveza e despretensão moleca (os desenhos sugerem facilidade, brincadeira) e

inebriamento (nos transportam para seus mundos), os cadernos se apresentam como plataforma

para sonhos. Ou, parafraseando a frase carimbada no meu caderno, vivem a urgência dos dias

em tons de desapego.

Por Pollyana Quintela

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